LER AS SUGESTÕES DA PAISAGEM
elemento essencial da poesia de Alonso Alvarez é a transformação que o real sofre na passagem pelas retinas do poeta. A atividade lírica é, como quer Manoel de Barros, um ato de "transfazer a natureza". Alonso consegue isso através de um olhar deformador que vê o cotidiano de forma inaugural, inesperada e, portanto, poética.
Os seus haikais se distinguem do grosso da produção atual, cujo característico dominante é um decalquismo vazio, por sua estrutura de surpresa. O cotidiano ganha uma imagem que está além da realidade. Isso porque o olho do poeta adoece tudo que vê.
Há uma constante nestes desenhos verbais: os elementos naturais ganham foros de ser vivo. Assim, temos: a nuvem grávida, que dá luz à primeira chuva de verão; o lago que sente frio e se arrepia sob a chuva fina; outro que pisca o olho para o poeta ao ser tocado por uma folha morta, num pacto de intimidade; o vento desajeitado que tenta segurar uma flor com suas mãos potentes; outro vento que se suja de terra numa brincadeira de roda; ou ainda aquele que entra em casa correndo, batendo portas, fugindo da chuva; a luz que aparece antropomorfizada — ela é dotada de voz numa metamorfose que embaralha os sentidos, o visual se torna auditivo; a cortina florida, esvoaçante, que é vista como uma primavera ao vento, numa nítida passagem do artificial para o vivo.
Tal tendência de deformar poeticamente o real revela um poeta que busca ler as sugestões da paisagem, e não representá-la de forma fiel e subserviente. Adepto de uma visão poética adoecida, Alonso enxerga as coisas como parecem ser e não como são. Isso, entretanto, não implica em superficialidade, mas em consciência do papel de desleitura que cabe à arte.
Na maioria das vezes o poeta doa uma condição humana aos elementos naturais (como, por exemplo, num dos haikais em que o sol se veste atrás dos prédios). Este recurso que se limita com o maravilhoso é o efeito de um desejo de promover a comunhão entre dois pólos conflitantes. No Ocidente prevalece a seguinte fórmula: "humano x natura". Alonso escolhe uma equação oriental: "humano + natura". A mudança de sinais aparece nesta doação de atributos humanos à natureza.
Há um haikai que é antológico:
terreno baldio
o poente
e uma placa: vende-se
Aqui estamos diante de um quadro urbano tão comum que nos surpreende a leitura descristalizadora do poeta. O terreno baldio é um oásis no deserto citadino, pequeno laboratório de natureza, engendrando formas vivas e rebeldes. O que está à venda não é apenas um imóvel, mas a própria natureza: o poente, que pode ser visto graças ao terreno vazio, e as plantas daninhas. Uma simples placa de anúncio comercial revela a ele a implacabilidade da era urbana. A sua poesia resgata a natureza, pois a vê não como inimiga, que deve ser vencida, devastada, mas como irmã (daí o motivo de aparecer com atributos humanos).
O choque desencadeado por uma visão inaugural torna saboroso o livro de haikais de Alonso, que, mesmo trabalhando temas milenares (este é o desafio do haikai) consegue criar novas e inusitadas formas de expressá-los.
Resenha para o livro HÉ-Haikais
MIGUEL SANCHES NETO
Escritor
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